Antes de começar, fica aqui meu boas-vindas para quem chegou desde o último outono. Essa edição é uma espécie de resposta a outra mais antiga, Contratempo. Um texto que decidi publicar mais por mim do que por você. Uma sensação de que era necessário um arremate nesta etapa da minha vida. Um encerramento para abrir espaço para o novo.
Vale dizer também que o disparador desse texto foi essa edição (sempre maravilhosa) da newsletter
do .1
Em 2019 recebi um diagnóstico de câncer de mama. Não era terminal, e ainda assim me senti como Roland Griffiths, como se nunca estivesse tão viva. Eu sei que soa estranho para muitos, como soou especialmente estranho para a minha mãe, e como, de alguma forma, hoje também me causa estranheza.
O tempo passou. Um processo que já estava em curso, de reavaliação de toda a minha vida, meus valores, minhas relações. E ao longo dos últimos anos muitas mudanças foram se solidificando.
Fui construindo uma nova realidade, fazendo novas escolhas, sendo agraciada pela própria vida com novos encontros e novas oportunidades.
Refazer uma vida inteira, desde coisas básicas como o que entra ou não no prato de cada refeição, até decisões mais complexas como mudar de cidade, e um tanto subjetivas, como mudar a forma de me relacionar e de pensar, não é nada simples.
Permitir se abrir para uma nova versão de si é algo que leva tempo. Que consiste na criação de novos hábitos, que só podemos chamar de hábitos depois que se mantém em nossa vida por tempo o suficiente, sendo incorporados na rotina.
Reconstruir uma vida foi um esforço consciente. Navegar contra o medo do desconhecido, enfrentar as inseguranças, conseguir criar um novo modelo fora do script. E o mais desafiador de tudo, sustentar por tempo suficiente, ou, em um português direto e claro, não desistir.
Este não é um texto inspiracional. E também não quero, neste momento, problematizar privilégios e coisa e tal. Ainda assim, quero dizer que fui, de muitas maneiras (muitas mesmo), criando uma vida com mais vida.
2
Com uma pitada de ironia, 5 anos mais tarde, justamente na consulta de “parabéns, você está curada”, com uma nova médica, já que a intenção era deixar o passado no passado, depois de abrir todos os exames que eu levava nas mãos, vem a pergunta: e este nódulo na mama esquerda, você já estava acompanhando?
Neste momento, ah, Roland, neste momento eu fiquei foi bem puta. Não de cara. De cara, tentei usar a estratégia do passado: “vai ficar tudo bem”, “já deu certo”, “vai passar rápido”. Palavras proferidas pela mente, mas que não ecoavam verdadeiramente no coração.
Minha intuição me dizia que este seria (finalmente) um encerramento. Mantive o otimismo – e penso que não poderia ser diferente.
O tempo seguiu passando e as palavras, sumindo. Uma ou outra escrita matinal. Um relato no caderno-diário-das-coisas-importantes-e-tal, mas o que se instaurou foi um grande silêncio.
Não havia nada a ser falado. Queria que passasse logo, e, ironicamente, os últimos meses pareceram não ter fim. Meus olhos atentos ao dia em que a médica iria falar: acabou. E o corpo tentando me trazer de volta, me lembrando que não há nada além do agora, que a vida é absurdamente frágil mesmo, que para morrer basta estar vivo, e que não existem garantias. Todos os clichês assim, enfileirados.
A ideia de morte pode ser elaborada de muitas formas e as religiões estão aí, prometendo uma vida eterna no além, ou um retorno para uma próxima experiência. Mas a verdade é que a única coisa que está garantida mesmo é essa inspiração que acompanha palavras apressadas sendo escritas no caderno. Garantida mesmo, apenas essa sua expiração, que, neste segundo seguinte, também se tornou passado e já não é mais.
Eu que, deliberadamente, não estava fazendo terapia, que não queria ouvir falar em psicossomática, espiritualidade, justo eu que, tão otimista, escritora, palestrante e cheia de palavras, não queria falar sobre o assunto. Mas eu mesma escrevi que a vida não para enquanto a gente não para.
Resolvi procurar uma terapeuta da linha cognitiva comportamental, com o intuito de me manter na superfície e, mais precisamente, encontrar uma solução ao meu problema. E na doçura de sua escuta, Juliana me disse: em 2019 sua vida estava confusa, não havia muita coisa em jogo. Hoje você construiu a vida que queria, hoje há muito a perder.
E morrer dá medo mesmo.
O mesmo câncer que me trouxe para a vida, voltava para me lembrar que poderia me roubar dela.
3
Revisitei o meu passado mentalmente muitas vezes. Não tive coragem de reler o que eu já escrevi, pois tudo me soava tão estranho. Sinto que, para me proteger, de alguma forma romantizei a morte. Essa morte que não é concreta, que é uma ideia que mora na nossa cabeça. Essa morte que pode ser tudo o que a gente quiser que ela seja.
Mas olhando para trás, não consigo ignorar o fato de que eu deixei a porta aberta. Na ocasião, não tinha toda a informação que tenho hoje, mas a verdade é que escolher não retirar as mamas e os ovários foi uma forma de apostar mais nas minhas crenças do que nos estudos da medicina. De estar mais no alto do que com os pés no chão.
Lá no passado também não era possível saber que eu provavelmente não teria estrutura emocional para lidar com as cirurgias. De alguma forma, estava escolhendo evitar uma parte da realidade que era dolorida demais.
Não apenas falei diversas vezes, como registrei no livro que, caso ficasse doente novamente, eu lidaria com isso. Parecia força, mas hoje eu percebo que estava mais para medo.
Somos complexos, cheios de camadas e pontos cegos. E, acima de tudo, buscamos algo para nos agarrar quando a vida em si se torna dolorosa demais.
5
Medo. Frustração. Raiva. Culpa.
O combo de emoções que não queremos sentir. E o que fazer com tudo isso? Fugir. Encontrar distrações, mirar o olhar bem lá na frente. Uma esperança de não ter que se encontrar com o caos novamente. De tentar preservar o que se tem. De fugir disso que rompe com tanta força.
Não quis olhar. Não quis ser vista.
Queria que o tratamento voasse como uma tarde de verão, mas os dias seguiam com suas 24 horas. Um monte de horas para que o caos pudesse se mostrar sempre surpreendente e imprevisível.
A resistência não impede a queda.
O desejo de que a realidade fosse outra não altera os fatos. Mas na ausência de si, as partes vão se espalhando por aí. Pequenas parcelas de mim que, por serem negadas, foram ficando para trás.
Foi preciso dar meia volta, retomar a trilha e ir integrando o que ficou perdido.
6
Eu não estava disposta a perder. Dessa vez, não.
E foi na correria que, ao invés de tirar do armário minha capa da coragem, peguei por engano a armadura e me vesti para o combate. “Eu sou forte e vou sair rapidamente desta”, mas a verdade é que resistir nunca é uma opção.
O diagnóstico do câncer foi um processo. Tratá-lo foi outro.
E aí veio a gripe, a febre, os neutrófilos que insistiam em não se recuperar. O atraso nas sessões, a tomografia e o trauma com nome de fungo no pulmão. A sinusite e o encurtamento do tempo, enquanto o medo crescia do lado de dentro.
A armadura te protege do que vem de fora, mas também cria uma barreira, impedindo que quem esteja ao lado se aproxime. Ao vesti-la e não retirá-la, é proteção e ilusão ao mesmo tempo.
Há uma separação. Do mundo e de si. A respiração se limita pelo pouco espaço. Não te permite sentir. E não te oferece garantias, já que pode até te proteger contra uma flechada, mas pode ser também a causa de uma ferida que, por não poder ser corretamente higienizada, se torna uma infecção que te leva a morte, me contou meu amigo Tukumbó.
Os sussurros vieram, mas do lado de dentro estava difícil demais de escutar. Alguém precisa vir com força para te arrancar de lá e te salvar de si mesma. Te deixar nua. Te deixar com você e nada mais.
Vulnerabilidade
Também escrevi e falei sobre ela. Mas estava com dificuldade de acessá-la dessa vez.
Não resistir não significa desistir. Reconhecer a fragilidade não é sinônimo de fraqueza. Sem máscara, as lágrimas puderam rolar à vontade.
Foi preciso seguir de peito aberto. Aceitar ajuda. Aceitar amor. Aceitar que as coisas nem sempre saem como a gente espera.
E agora, não me esquecer disso jamais.
Post scriptum
Depois ainda veio cirurgia e todo o seu impacto e a radioterapia que se encerra em dois dias. Respiro aliviada e celebro o poder de regeneração do corpo. Celebro este novo corpo. Agradeço imensamente a oportunidade de estar viva e poder viver cada dia com inteireza. Fim.
Agradeço a você que chegou até aqui.
Agradeço a quem sempre esteve.
Agradeço a quem apareceu hoje pela primeira vez.
Que a gente possa seguir honrando a vida.
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Bruna, querida, bom ver você por aqui novamente. Talvez o assunto não seja algo direcionado ao outro, mas fala muito sobre transformação, mudança, crescimento interior e resiliência. Sempre me admiro com a sua constante busca por entendimento do momento em que está passando. É como estar sempre tentando ouvir o que a vida está dizendo para encontrar resposta dentro de você mesma. No fim parece que a cura mais que do corpo, é da alma mesmo, e o corpo é só um veículo. Que você siga aprendendo e nos ensinando. Um grande abraço, sempre torcendo pela sua recuperação.
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