Nunca vou me encaixar
Uma newsletter fora de hora, e mais intima do que de costume, pelo simples motivo de que alguns textos pedem urgência.
Uma angústia adentrou meu peito e veio com passagem só de ida. As semanas corridas, voltadas para a realização de projetos e com pouco espaço para reflexão e escuta deixaram a sensação ao fundo. Mas ontem ela veio com tudo.
Para mim, uma das mais eficientes ferramentas de sensibilização é a arte. Pode ser um livro, uma música, uma obra de arte, mas sinto que bons filmes são uma porrada daquelas. Imagem, som e um roteiro que se comunica com o nosso coração fazem isso, abrem as portas para o mais profundo e permitem que a gente dê vazão ao sentir.
Por um motivo que será anunciado em breve nesta newsletter, assistimos, eu e o Jaya, meu companheiro, o filme chamado O Rei do Show, do diretor Michael Gracey. Você conhece?
É um musical de 2017 que, por não ser meu gênero favorito, associado ao fato de que naquele ano eu também não teria repertório suficiente para adentrar sua profundidade, só chegou a mim em 2023.
O filme conta a história de P. T. Barnum, um showman e empresário que nasceu dois séculos atrás, e fundou um circo com diversos personagens não-tradicionais. A produção é maravilhosa, a história é belíssima, e o roteiro é tão profundo e sensível que terei que assistir novamente.
Mas voltando ao sentir que o filme produziu em mim, começo pelo começo: percebi que ainda estava tentando caber no mundo. De novo.
Bert Hellinger foi bem cirúrgico ao identificar que uma das nossas necessidades primordiais como seres humanos é o pertencimento. E, apesar de eu já ter elaborado este ponto específico, noto mais uma vez quão fortes e traiçoeiros podem ser nossos padrões inconscientes. Retornam e se instauram bem no meio do caos.
Me dei conta de que estava, novamente, querendo ser amada e reconhecida. Um reconhecimento que não sei bem qual é, mas que, invariavelmente, passa por uma aprovação social e desemboca nos meus pais.
Notei como minha história de “superação”, como as pessoas gostam de falar, me abriu um espaço para o grande palco da vida. Não sou a mais bonita, nem a mais inteligente, tampouco a mais carismática, mas ser alguém que “venceu” muitas “batalhas” me conferiu uma certa “notoriedade”.
E com essa projeção veio o medo: o que faço agora que não há mais nada a ser superado? E se não houver nada relevante a ser falado? Invariavelmente, não estarei mais “lá”.
Tenho trilhado uma jornada diferente dentro da comunicação e adentrado cada vez mais o universo da literatura. Mas reconhecer a arte como um “mercado”, que se sustenta pelos mesmos mecanismos que qualquer outro (conexões, influências e dinheiro), bem diferente do meu ideal romântico de reconhecimento artístico e sensibilidade humana, é encarar uma realidade que precisa ser enfrentada.
Ser no mundo pragmático está muito além de ter um sonho e sustentá-lo, exige também um belo estômago e bastante desprendimento.
Penso comigo: ah, é só fazer isso, isso e mais isso, e pronto, meu trabalho terá visibilidade. E vou me adaptando, vou me moldando a estes pequenos “detalhes”.
Com o desenrolar do filme, Barnum identifica uma oportunidade de habitar espaços que o eram negados. Através da parceria com uma cantora internacional, ele consegue seu ingresso para a burguesia, se apartando de seus companheiros de jornada do circo.
Conforme o filme se desenrola, ele e a tal cantora compreendem que este lugar nunca será verdadeiramente deles. Algo que o brasileiro sabe muito bem, pois apesar de todos os avanços sociais e discussões de diversidade em pauta, as linhas invisíveis continuam lá.
Desculpem os spoilers, mas minha consciência foi se dando na medida em que o roteiro foi se desenrolando. O filme termina com o grupo se reconciliando e se reconhecendo como uma grande família.
Neste momento, pude perceber que venho tentando mudar o mundo, não para que seja um lugar melhor, não apenas para isso, mas, em especial, para que eu possa finalmente caber.
Sigo me pergunto: por que não nasci diferente? Seria tão mais fácil se minha forma coubesse nos espaços disponíveis.
Reconhecer essa dor que vem da menina acuada que existe dentro de mim, entrar em contato com as emoções e os desejos dela, é a porta de saída. E me fez me perceber pequena demais para causar a transformação que seria necessária.
Queria que todos nós, os diferentes, pudéssemos caber. E só existiria uma forma de isso dar certo: se pudéssemos ser quem somos. Enquanto a gente insistir em se parecer com o outro, ajustar alguns “detalhes”, vamos nos sobrepondo. Se a criação divina (ou natureza, como preferir) nos quisesse iguais, não nasceríamos diferentes.
O mundo precisa de cada cor e de cada som e de cada emoção e de cada ponto de vista. Se olharmos para o resto, vamos perceber que já é assim, existe harmonia entre tudo o que há.
A complexidade humana e a ideia de ter que pagar boletos fez com que nos perdêssemos de nós mesmos. Deixássemos escapar a nossa conexão com o todo.
No âmbito particular, neste mini espaço que crio com cada pessoa com quem me relaciono, nos meus exercícios de existir digitalmente e nesta realidade que busco viver minha vida off-line, faço um esforço consciente para valorizar a autenticidade, as vozes e os silêncios. Me atento para que a sensibilidade possa estar lado a lado com a razão. Tento simular o mundo que eu gostaria que existisse.
Nem sempre dá certo, e é por isso que eu preencho minha vida com arte, atividade física, natureza e pausas. Na tentativa de nunca me esquecer quem realmente sou e o que realmente importa.
O filme deixa bem claro o único caminho possível: nós, os desencaixados, nos unirmos. Criarmos um lugar à parte, já que, como é dito no filme, “não precisamos ser amados por todos, apenas por algumas boas pessoas”.
Como diria Nando Reis: não vou me adaptar.
E se chegou até aqui, me conte como isso tudo soa para você. Seu lugar no mundo está garantido? Ou você também faz parte dessa louca tribo?
Lindo texto Bruna! Obrigada por compartilhar.
Me trouxe a reflexão sobre o encontro do lugar de paz, do acolher quem somos, com nossas potencialidades e vulnerabilidades. Baixar a voz do ego, que tanto julga e busca o externo, para sintonizar mais com o coração. Uma busca constante que requer um olhar atento para dentro. O orai e vigiai de cada dia, para não sermos levados pela maré das emoções e interferências externas.
Fiquei com vontade de rever o filme. Algumas músicas ficaram na minha playlist por um bom tempo. 😃
Também sigo na busca do meu lugar no mundo... sem precisar me espremer nem alargar demais! Valeu pelo texto e pela dica do filme, vou procurar!