“Dentro do pensamento Yanomami, é preciso realizar a separação entre os mortos e os vivos, e tudo o que remete ao morto deve ser apagado, algo que ocorre ao longo de sucessivos e complexos rituais funerários que podem durar anos.”
Este trecho faz parte dessa belíssima reportagem do Sumaúma escrita por Hanna Limulja (inclusive, recomendo a leitura de toda a matéria) e fico aqui me perguntando: se já tínhamos dificuldade de lidar com a morte, se já nos custa tanto olhar para a roupa que ficou no armário, as anotações na gaveta e as fotos (que costumávamos revelar) nas paredes de casa, agora temos uma vida digital inteira que não se desfaz.
Lembranças no Facebook, trocas de mensagem pelo WhatsApp, fotos na galeria do celular. Ao invés de deixar a pessoa ir como os Yanomami, nós mantemos as lembranças vivas, quase como se a pessoa pudesse continuar aqui ao nosso lado.
Quando vi a (polêmica) campanha da Volkswagen em que a imagem da Elis Regina foi artificialmente recriada para que pudesse fazer um dueto com sua filha, Maria Rita, fiquei muito mexida.
Particularmente, me assusta observar a velocidade com que estamos adentrando este universo da inteligência artificial com tamanho grau de realismo com tão pouca discussão sobre ética, regulamentação e possíveis efeitos colaterais em nossa experiência humana.
Observo o quanto a internet já impactou nossas vidas e quão pouco discernimento ainda temos sobre como fazer um bom e saudável uso das telas. Não passamos nem da primeira fase e já entramos com tudo na segunda, sem consentimento ou opção de sair pela tangente. Está posto e a gente que lute.
A discussão sobre toda essa realidade virtual é enorme, mas aqui escolho olharmos juntos para este recorte: como essas imagens e narrativas irão compor o nosso inconsciente e interferir em nossas memórias?
Não sou cientista ou psicanalista para falar do ponto de vista técnico, mas sei que a nossa mente processa essas imagens sem conseguir diferenciar o que é realidade do que é ficção. Você também não precisa ser estudioso, basta perceber as respostas físicas do seu corpo quando assiste à um filme com cenas de crueldade. Sentimos a dor como se aquilo estivesse acontecendo com a gente.
Os sonhos também nos oferecem uma experiência semelhante e mais capciosa, pois muitas vezes sonhamos com quem conhecemos. E o corpo também reage: acordamos ofegantes, suados, ou até com raiva de alguém que não tem ideia de nos visitou durante a noite.
Não sei se já te aconteceu, mas eu tenho uma série de lembranças da infância que nem sempre sei se aconteceram de verdade ou se são frutos da minha imaginação. Ou até casos em que um sonho me marcou mais do que uma experiência que eu vivi de fato: até hoje me lembro do dia em que sonhei com um dinossauro do chocolate Surpresa rondando a casa da minha avó.
Escutando o podcast da Rádio Novelo, ouvi o relato da Vivi. Desculpem o spoiler, mas no episódio em questão ela conta sobre ter sido enganada por uma amiga, Tânia, que apresentou virtualmente alguns amigos que não existiam (era ela quem dava voz à eles).
Vivi conta que se apaixonou por um deles e, no momento em que Tânia não mais conseguiu sustentar a mentira, deu um jeito de “matar” o rapaz em um “acidente de trabalho”. Choraram juntas.
Sei que a história soa como um grande absurdo e por isso é legal escutar a própria Vivi narrando, mas o que me deixou intrigada foi perceber que mesmo o homem sendo uma invenção, o luto que Vivi experimentou foi verdadeiro.
Imagino uma AI acessível para que nós mesmos possamos recriar vídeos com pessoas que já morreram, fazendo coisas que elas não escolheram fazer, e incluindo em nossas memórias mais este conjunto de imagens que vão se misturando com a vida real.
Pensando além do “eu não te autorizei”, não temos a menor ideia de como isso irá afetar a nossa mente. Como iremos lidar emocionalmente com essas possibilidades? Como as memórias irão se comportar com o nosso envelhecimento em que lembranças já se embaralham naturalmente?
Sim, o fogo é ótimo, mas com certeza muita gente se queimou até aprendermos a usar corretamente a nova tecnologia. No futuro, saberemos mais e teremos mais condições de fazer bons usos, mas neste caminho sinto que alguns serão feridos e, por isso, na medida do que me cabe, escolho sair pela tangente.
Indicações que você não pediu: 3 filmes
Beau Tem Medo Um filme bem longo, louco, super bem produzido, com alguns pontos polêmicos, mas outros maravilhosos. E uma curiosidade: achei o Beau jovem tão estranho que fui pesquisar o ator Armen Nahapetian e descobri que não fui a única a estranha-lo, pois o ator se apresenta em seu instagram como I’m not AI (não sou inteligência artificial).
O que fazer? Um filme “Sessão da tarde”, mas que nos faz pensar sobre a vida e a morte.
O Gênio e o Louco Uma história bonita demais, que deixou meu coração esperançoso, e também toca uma camada do luto.
Seguindo o fio
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E também aqui:
Oie! Gostei muito do texto. Me fez lembrar da série “Extrapolations”, na apple+: num dos episódios finais, o personagem usa da tecnologia da empresa que dominou o mundo pra fazer o upload diário de suas memórias, assim como usa as memórias de outras pessoas pra oferecer um serviço de substituir os parentes já falecidos. É difícil e confuso de explicar rs mas é uma série impactante! Talvez você goste 😊
Interessante essa discussão, Bruna. Já ouvi falar de celebridades que estão tentando judicialmente impedir que a sua imagem seja usada no futuro através de IAs. Penso que as pessoas vão se apegar a robôs no futuro e isso me faz lembrar do filme "O homem bicentenário". Temos que ter muito cuidado com essas tecnologias, e é bem pertinente pensar no quanto elas mantém vivas pessoas ou coisas que precisamos deixar em outros lugares.